Dama Pé de Cabra - Versão I - Senhor de Biscaia
Caros leitores, trago hoje, a primeira parte da lenda da Dama Pé-de-Cabra, que era transmitida oralmente desde o Século XI e registada pela primeira vez no Século XIV no Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. Foi também compilada por Alexandre Herculano, 1851, no seu livro "Lendas e Narrativas". Sem mais demoras, vamos então à nossa lenda:
Foto de autor desconhecido do site Ochus Bochus
Era uma vez, na província de Biscaia, um nobre senhor de seu nome D. Diogo Lopes, senhorio dessa província, que caçava por as suas terras, quando foi surpreendido por uma donzela que cantava sentada numa pedra. Espantado por tamanha beleza, ofereceu o seu coração, as suas terras e os seus vassalos, em troca da sua mão, no entanto, a dama recusou as oferendas e impôs-lhe uma única condição para esse matrimónio acontecer, nunca mais se benzer. D. Diogo, aceitou sem nenhuma hesitação. Nessa noite, no seu castelo, quando o nobre senhor se apercebeu que a sua dama, por quem estava perdido de amores, tinha os pés forcados como os de uma cabra. Todavia, esse promenor não impediu o casal de viver em paz e união durante muitos e muitos anos, sendo fruto desse amor D. Inigo Guerra e Dona Sol.
Pintura Paula Rego
Certo dia, após uma caçada, durante um grandioso jantar com toda a família reunida, D. Diogo premiou Silvano, o seu alaunt/alão - cão dado como extinto nos dias de hoje, que por vezes era usado como presa para a caça de animais de grande porte, mas que contribuiu para o desenvolvimento de cãos como alaunt Mastiff que conhecemos hoje - com um grande osso, quando este foi atacado pela podenga preta de sua mulher que o matou para se apoderar do pedaço de javali. Espantado com tal violência e meio embriagado, D. Diogo, benzeu-se e exclamou que tal coisa só podia ser "coisa de Belzebu". A dama deu um grito, como se estivesse a ser queimada, começou a elevar-se no ar, os seus olhos tornaram-se brilhantes, a sua pele negra, os cabelos eriçados e as unhas em garra. Enraivecida, pegou na sua filha e começou a aproximar-se de D. Inigo, para também o agarrar, quando D. Diogo exclamou "Jesus, santo nome de Deus!", benzeu-se, e mais uma vez a Dama Pé-de-Cabra soltou um grito de dor, elevou-se mais alto no ar e saiu com a sua filha chorosa pela janela, nunca mais sendo vistas.
Ilustração Filipe Soares
O nobre senhor, tornara-se carrancudo e triste, tendo sido excomungado pelo seu enlace com a misteriosa dama. Recebeu como petinência a missão de guerrear os mouros por tantos anos quanto os que vivera em pecado. Partiu então para a guerra onde anos mais tarde, ficou cativo em Toledo.
D. Inigo, sem saber como resgatar o pai, resolveu ir à procura de sua mãe, que segundo uns e outros diziam, ou se havia tornado uma fada ou uma alma penada, histórias essas que eram conhecidas há mais de cem anos.
Foto Michael Oppermann
[Reza a lenda, que um ilustre conde, Argimiro o Negro, em tempos possuía aquelas terras, havia prometido no leito de morte do seu pai, nunca matar uma fera com crias ou no seu covil, fosse um javali, um urso ou outra qualquer. Contudo, durante uma montaria em que não encontrava caça, entrou numa caverna e matou um ónagro - subsespécie de burro selvagem encontradas especialmente nas zonas dessérticas da Ásia- que protegia as suas crias. Argimiro ouviu uma voz misteriosa que lhe disse que pelas suas acções ficaria desonrado, mas ele não fez caso. Pouco tempo depois, o conde partiu para a guerra e deixou a sua esposa no castelo. Quando regressou, descobriu que a bela condessa se encontrava às escondidas com Astrigildo o Alvo, um nobre gardingo que todas as noites era guiado por um ónagro ao seu encontro. Enraivecido, matou-os, ouviu de seguida a mesma misteriosa voz "Por ti ficaram órfãos os filhinhos do ónagro, mas por via do ónagro ficaste, oh conde, desonrado. Foste cru com as pobres feras: Deus acaba de vingá-las." Desde essa altura as almas da condessa e do gardingo apareciam em Biscaia, ela de branco e vermelho vestida, enquanto em cima de uma pedra cantava, ele por perto, na forma de um ónagro.]
Foto Michael Oppermann
Na serra, D. Inigo, estava acompanhado do seu mastim favorito, Tárik, quando encontrou a Dama de Pé-de-Cabra, sua mãe, que resolveu ajudar o filho, com a condição de este aguarda um ano pelo término da penitência de seu pai e a promessa de lhe dar um ónagro de seu nome Pardalo, enquanto lhe lançava um feitiço para o adormecer profundamente por mais de um ano. Quando o cavaleiro acordou, sem noção de quanto tempo havia passado, partiu de imediato com a criatura até Toledo. Estava uma negra e terrível tempestade, atravessaram as muralhas da cidade e entraram na prisão, onde com um coice o ónagro abriu a cela. Pai e filho cavalgaram em fuga, o mais rápido que conseguiam, no caminho, encontraram um cruzeiro de pedra que fez o animal parar. A voz da Dama de Pé-de-Cabra, fez-se ouvir e instruiu o ónagro a evitar a cruz. Reconhecendo a voz, ao fim de tantos anos e sem saber da aliança entre o filho e a mãe, D. Diogo exclamou "Santo Nome de Cristo!" e benzeu-se, o que fez com que o ónagro os sacudisse da cela, a terra estremecesse e abrisse, tornando visível o fogo do Inferno, que engoliu o animal nas suas profundezas. Com tamanho sustos, os dois desmaiaram. Quando de novo voltaram a si, nenhum vestígio restava do que se passou naqueles instantes, os dois caminharam até Nustúrio, a aldeia mais próxima, onde os receberam e cuidaram no castelo de D. From.
D. Diogo, nos restantes anos que ainda viveu, todos os dias ia à missa e todas as semanas se confessava.
D. Inigio, morreu de velhice, nunca mais entrou na igreja e crê-se que tinha um pacto com o Diabo, pois, apartir de então, não havia batalha que não vencesse.
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Após alguma pesquisa, a veracidade desta lenda, pode, parte dela, ser verídica, mas vamos por partes.
A opção primeira é, o nosso D. Diogo desta lenda era nada mais nada menos que Diego Lopez I de Haro "o Branco" (1075-1124), foi membro da Casa de Haro e o terceiro Senhor da Biscaia (1903-1124). Filho de Lope Iñiguez e de Tecla Dias. Casou com Maria Sanches e teve três filhos deste matrimónio: Lope Díaz I de Haro, 4º Senhor de Biscaia, Sancho Díaz, tenente de Treviana e Gil Díaz. Mas segundo a lenda, nenhum destes poderia ser D. Inigo, pois este morreria de velhice e não em batalha, o que aconteceu aos três filhos deste casamento. A única veracidade desta lenda é que D. Diogo foi castigado pelo seu envolvimento com a misteriosa dama, o que me leva a crer que D. Diogo deve ter traído a esposa Maria Sanches pois D.Inigio seria um filho bastardo.
A segunda opção é a lenda ser sobre Lope Díaz I de Haro 4º Senhor de Biscaia, que do seu casamento com a condessa Aldonça Rodrigues, teve onze filhos, mas diferente de seu pai, teve três filhos bastardos: Lope Lopes de Haro, Sancho Lopes de Haro e Martim Lopes de Haro.
Na terceira opção, Iñigo Lopes, foi o primeiro senhor de Biscaia, sendo o sucedor de seu pai Lope Velázquez (o nosso D. Diogo), entendo o que dizem sobre o pacto com o Diabo, pois Iñigo tem muitos títulos e histórias dos quais se pode gabar. Não existe registo de mãe, nem de irmãs, apenas de seu pai e seu tio. Por isso se me perguntam a mim, esta lenda sim, pode ter um pingo de verdade, talvez romantizada para esconder as atrocidades praticadas naquela época.
Boas leituras